terça-feira, 5 de agosto de 2014

Segregação entre homens e mulheres no desporto

"I guess my point is, in this day and age, you can see the respect women have from men". Palavras de Nancy Lieberman, primeira mulher a treinar uma equipa profissional de basketball nos EUA. Referia-se aos cada vez mais constantes elogios às ligas desportivas femininas. E tem razão. Sobretudo quem está dentro do mundo do desporto percebe a enorme evolução que tem havido nas competições e na qualidade das equipas e dos valores individuais femininos. E ainda assim, mesmo em quem representa esse respeito, continua a haver uma aura de distanciamento. Elas jogam, literalmente, noutra liga - e não pode haver misturas. O desporto "a sério" é para os homens.

A diferença de força

O argumento principal continua a ser o de que os homens simplesmente são mais capazes fisicamente do que as mulheres. E isso é verdade, mas é verdade em média. O Pablo Aimar, um dos jogadores mais influentes de sempre no Benfica e um dos mais bonitos de ver jogar também, media 1m70 e pesava 60kg. Acho que todos nós conhecemos mulheres com uma capacidade física superior à dele.

Talvez uma mulher não consiga jogar na linha de uma equipa de futebol americano (em média, um jogador de linha da NFL mede 1m93 e pesa 140kg), mas isso não quer dizer que não possa jogar futebol americano. Muitos treinadores da NFL já disseram que as mulheres podem jogar como kickers (cuja única função é chutar a bola e o contacto físico a que está exposto é praticamente inexistente), mas com certeza que existem mulheres com capacidade física para aguentar - e dar - umas valentes porradas noutras posições.

Os atletas paralímpicos têm questões físicas quer perturbam a prática de certas modalidades, e no entanto ninguém pensaria em proibi-los de participar nas ligas principais. Pensem bem no assunto: seria como proibir atletas brancos de participar nas provas de velocidade ou de fundo do atletismo porque as suas capacidades físicas são menores, em médias, que as dos atletas pretos, ou os atletas pretos de participarem nas provas de natação e ciclismo porque são piores que os atletas brancos. Been there, done that.


Pam Reed, Badwater Ultramarathon

As diferenças sem justificação

E se a principal razão para segregar homens e mulheres no desporto tem a ver com a questão da capacidade do corpo, porque razão se separam rapazes e raparigas muito antes de essas diferenças se começarem a sentir? Nos EUA, uma rapariga de 12 anos num torneio sancionado de golfe joga 9 buracos; um rapaz da mesma idade joga 18. Então e como explicar as diferenças e a existência de ligas separadas em desportos onde o poderio físico não interessa para nada? Porque raio é que existe uma liga para mulheres e outra para homens no bilhar? Jogos como o poker, jogos de cartas e videojogos são historicamente competições mistas, mas recentemente, e devido à vontade de serem reconhecidos como desportos a sério, começaram também a segregar géneros.

"É uma questão de igualdade de oportunidades"

A outra razão que se costuma apontar é que, se misturarmos homens e mulheres nas mesmas ligas, uma mulher nunca poderá aspirar a vencer um Grand Slam no ténis, por exemplo, ou a Volta à França. No entanto, vetar as actuais ligas masculinas às mulheres também é igual a dizer a qualquer rapariga que comece um desporto que ela nunca será tão bem paga como um homem, que nunca terá tanta gente a ver os seus jogos e nunca sentirá na pele a atmosfera de competições como, lá está, os Grand Slams ou a Volta à França, o Campeonato do Mundo de Futebol ou a NBA. A verdade é que, actualmente, as competições femininas têm menos adeptos, menos apoios, menos participantes e menos espectacularidade. E isso afasta algumas raparigas que estão a começar porque sabem que dificilmente poderão sonhar mais alto. Se há menos gente a entrar, perde-se competitividade e algumas atletas fantásticas nunca começarão sequer a competir. E se se perde competitividade e qualidade, perdem-se adeptos, apoios, espectacularidade... Vêem onde quero chegar, certo?

Quem entra num desporto entrega-se por várias razões: o gosto pela competitividade, o espírito de equipa, pelas vitórias, mas sobretudo pelo sonho de ser maior, de ser O maior. E esse sonho não existirá para as mulheres enquanto as competições não forem universais.


Danica Patrick, Japan Indy 300


"Então e o balneário?"

Aquela que talvez seja a razão mais defensável, hoje em dia, será a da dificuldade da gestão da equipa com a inclusão de mulheres. A harmonia de uma equipa faz-se da confiança que se tem no tipo que está ao nosso lado e essa confiança só vem da proximidade que temos com essa pessoa. A estranheza de ter uma mulher num mundo que até agora foi de homens poderá afectar o funcionamento do balneário, o à-vontade e o entrosamento da equipa; pode, nalguns casos piores, dificultar essa proximidade necessária. E depois há o escrutínio a que essa equipa estaria sujeita se tivesse "a primeira mulher" de qualquer desporto  E nenhum manager ou treinador quer isso para a sua equipa.

Mas isso só acontece porque não há mulheres a jogar com homens. É a mesma razão pela qual "não há" gays nas ligas profissionais e não havia gays (ou mulheres) no exército. Rapidamente, como tem acontecido entre os militares, essa diferença desaparece. Basta que os dirigentes tenham essa coragem.

Em 1980, Ann Meyers foi a primeira mulher a receber um contrato de uma equipa da NBA. Ganhava 50.000$ anuais (o ordenado máximo na liga feminina era de 20.000$), que ainda assim era bastante menor do que a média na liga masculina - 200.000$. Ann nunca chegou a jogar pelos Pacers. O treinador, Bob Leonard, perguntou-lhe directamente porque é que ela queria causar embaraço para a equipa, dispensado-a na primeira semana de treinos. Segundo os relatos que temos, Ann Meyers nunca teve problemas em acompanhar os homens.


Caster Semenya teve de passar por um escrutínio incrível para provar que podia participar em provas femininas

"Mas então e a diferença de qualidade que está à vista de todos?"

O argumento que geralmente acaba com a discussão é o de que as ligas masculinas são sempre disputadas a nível superior. Nenhum recorde mundial de atletismo masculino foi superado por uma mulher. Nos desportos de equipa e noutros, como o ténis, a diferença de qualidade overall é óbvia. Pois. Mas quantas mulheres existem a praticar esse desporto? E quantos homens? Quanto tempo passaram essas mulheres, sobretudo na fase mais importante que é o início, a praticar e a pensar nesse desporto? Há muito mais coisas que determinam a capacidade que um atleta tem num determinado desporto. A capacidade física é uma delas, mas a imersão nesse desporto - quantidade de tempo investida, motivação pessoal, incentivo externo por parte dos pais, amigos ou treinadores, qualidade e condições dos treinos, etc. - é tão ou mais importante. As mulheres que hoje vemos no desporto tiveram menos incentivos, menos condições e, provavelmente, menos motivação (porque, mesmo que inconscientemente, sabem que não podem sonhar tão alto) para treinarem e lutarem por uma posição no topo.

Eileen McDonagh, psicóloga e co-autora do livro Playing With the Boys, diz mesmo que "estas questões são profecias que se cumprem a si próprias. É mau para as mulheres serem excluídas. O processo de discriminação faz com que mesmo as  mulheres se sintam inferiores". Há ainda o estigma de que uma rapariga que pratique desporto é menos feminina, uma maria-rapaz, ficando ali no limbo que hoje em dia separa um género e outro na juventude e poucas raparigas, ou poucos pais, estarão dispostos a ir contra a corrente.

Há ainda a questão de que os desportos mais jogados no mundo foram inventados por homens e para serem jogados por homens. Pode parecer pouco importante, mas leiam este artigo que fala nesta questão. Esta é uma questão realmente difícil de contornar, uma vez que seria realmente necessário reinventar (ou inventar) desportos que englobassem diferentes tipos de corpo e habilidades (e não só tendo em conta a diferença entre homens e mulheres). O desporto estará, provavelmente, num estado demasiado avançado e complexo para que tal seja possível.

E mesmo assim há mulheres que chegam ao topo. Na equitação (a única modalidade Olímpica mista) as mulheres já foram medalhadas em todas as categorias nos Jogos Olímpicos: em 2004 levaram todas as medalhas da competição individual. No wrestling, uma rapariga venceu um título estadual. No Bowling, Kelly Kulick venceu um Major nos EUA. Danica Patrick já fazia parte dos pilotos dos EUA mais famosos quando venceu o Japan Indy 300. Lynn Hill, na escalada, foi a primeira pessoa a subir em modo free climb uma das mais famosas montanhas nos EUA. Em 1926 Gertrude Ederle foi a primeira mulher a atravessar o Canal da Mancha a nado e bateu o record masculino por mais de duas horas. Pamela Reed venceu a Ultramaratona de Badwater por duas vezes, em 2002 (bateu o homem mais rápido por mais de 4 horas) e 2003; foi também a primeira pessoa a correr 300 milhas sem dormir - o vencedor da Ultramaratona de Badwater de 2004 tentou o mesmo feito por duas vezes e falhou em ambas.


Gertrude Ederle, no Canal da Mancha

"Então qual é a tua solução?"

Manter a separação de ligas não é solução, mas acabar com as ligas femininas terá concerteza o efeito contrário ao pretendido: muitas mulheres, actualmente, não conseguirão acompanhar o ritmo das ligas masculinas e acabarão por desaparecer nas ligas inferiores. Eu defendo uma solução mista.

As ligas principais serão compostas por homens e mulheres. Paralelamente, existirão ligas femininas equivalentes à 2ª devisão ou liga de prospecção disputadas pelas mulheres que decidam não participar nas competições mistas. Isto permitirá às mulheres, desde o início, se querem sonhar o mais alto possível, ao mesmo tempo que podem tomar a decisão de não querer competir com atletas com maior capacidade física. Mas claro que isto seria só o início. As mulheres que poderão entrar imediatamente nas ligas mistas abrirão as portas para que mais mulheres entrem, não só porque serão capazes de provar que o conseguem fazer mas também porque eliminam a estranheza inicial; ao mesmo tempo, as ligas femininas ganharão importância porque serão mais disputadas (estarão cheias de mulheres que querem passar para o patamar superior) e porque serão precisamente ligas de prospecção, competições observadas por olheiros à procura de talento. Eventualmente as raparigas crescerão a pensar mais em desporto e a praticá-lo mais também, sonhando com os lugares mais altos.


Brenda Frese, grávida de gémeos, precisou de uma cadeira para comandar a sua equipa da sideline. Ganharam na mesma.

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